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Ana Jara, 37 anos, Arquitecta, Ateliê Artéria

Ana Jara

37 anos
Arquitecta

Começámos a trabalhar juntas em 2006 eu e a Lucinda Correia (arquitecta, 38 anos). Durante um certo tempo, estando à distância – ela estava no Porto e eu em Sevilha – tínhamos trocado ideias, fazendo trabalhos conceptuais, alguns não necessariamente de arquitectura. Eu vinha de uma experiência de vários anos fora do país, que me permitiu ganhar a consciência de que o que queria fazer tinha a ver com o lugar de onde provinha, onde o entorno, o território, o contexto histórico e social, os afectos seriam totalmente compreensíveis.

Estando fora, precisaria de muito tempo para entender na totalidade esse entorno. Tomei consciência do que é pertencer a um lugar na minha estada em Espanha – começava a construir uma perspectiva crítica e a querer intervir, mas estava imersa numa cultura milenar num país complexo e plural e agir seria sempre um acto à superfície.

Começámos a montar uma microestrutura, baseada numa paridade entre nós – reconhecendo-nos como iguais e com grande partilha de ideias. Havia uma grande vontade de exercer a profissão mas as primeiras experiências falharam, havia também uma certa inocência. O primeiro ateliê foi em minha casa. Fizemos alguns projectos e fomos mal pagas, a estrutura não era sustentável. Embatemos na dura realidade e percebemos que havia competências que não tínhamos. Inscrevemo-nos num curso de empreendedorismo, para perceber como montar uma empresa e, basicamente, poder pensar sobre coisas que não sabíamos fazer: angariar clientes, fazer o marketing da nossa actividade, comunicar bem. Habitualmente os arquitectos costumam comunicar para os pares. Quem é que entende essa linguagem quando vai à procura de um ateliê de arquitectura na internet? Imaginámos o site da Artéria como uma mesa de trabalho, um universo táctil para que as pessoas escolham o que querem ver. Queríamos saber como se estrutura um negócio mas sempre com a perspectiva de fazer projectos de arquitectura. Houve imensas dificuldades para ultrapassar: nesse curso de empreendedorismo lembro-me de ter dito, na primeira aula, que estava ali para saber como poderia tornar sustentável o exercício da minha profissão. Os professores diziam-nos para não nos metermos nisso, um ateliê não dava nada, ou eram grandes obras com volume evidente ou mais valia mudar de área. Hoje, o local onde fizemos essa formação dá cursos de empreendedorismo social.

Explorámos possibilidades, procurámos muitas soluções. Pode-se dizer que a Artéria teve um arranque decisivo com o Edifício-Manifesto, cuja concretização resultou de um convite da Artéria à Associação Renovar a Mouraria para embarcar numa reabilitação-manifesto de um edifício camarário devoluto. Estávamos na Mouraria e o nosso desafio foi reabilitar um imóvel banal como tantos que existem nos bairros históricos de Lisboa. Partimos para o projecto com zero euros de financiamento mas com um grupo de pessoas motivadas. A Lucinda Correia fazia uma pós-graduação sobre o impacto do plano de urbanização do núcleo histórico da Mouraria, dez anos depois de ter sido criado, para tentar entender em que medida a legislação tinha ou não contribuído para a reabilitação do bairro.

O edifício foi reabilitado e é hoje a Casa Comunitária da Mouraria, que disponibiliza uma série de serviços de proximidade para os habitantes do bairro. Dizem-nos que a reabilitação é mais cara do que a construção nova. O Edifício-Manifesto teve como objectivo provar que reabilitar não é mais caro do que construir de novo, precisamente num bairro histórico, onde há um grande conjunto de edifícios negligenciados e geralmente pouco atractivos para os promotores imobiliários. Quando se trata de reabilitação de edifícios cada caso é um caso. É um campo amplo e diverso, o que faz com que seja pouco lógica toda essa assertividade.

Durante algum tempo da minha vida fiz cenografia e, numa montagem teatral, os actores fazem a personagem que tiverem que fazer, aceitam o desafio. No teatro, as pessoas podem ser tudo sem deixarem de ser o que são. Faz-se o que é possível com o que há, com a nossa memória, a nossa crítica, as nossas emoções. Não somos menos porque construímos menos metros quadrados. O desafio é o mesmo, haja muitos metros para edificar ou um pequeno espaço a repensar. Pelo facto de sermos mulheres temos menos presente uma certa ânsia de construir. Sabemos que há homens que também pensam assim mas sentimos que têm mais apetite para marcar o território. Fomos descomplexando esse complexo de construir. O desafio que tenho à minha frente e próximo de mim – que exige conhecer a Mouraria ou outro bairro, falar com as pessoas que lá vivem, saber para que vai servir um edifício em que queremos intervir – é mais estimulante. Faço com o meu corpo – como no teatro – e com o que tenho à disposição.

Não acho interessante estar aqui e construir no Dubai. Interessa-me um resultado mais afinado, incisivo, uma resposta fina. Esse tipo de respostas tem relevância, é como se espetasse uma agulha no ponto exacto do problema por resolver. Parece claro, pois, que os honorários dos arquitectos não podem estar indexados ao valor dos metros quadrados construídos. O que nós vendemos é uma competência, que não diminui quando a volumetria baixa. Podíamos pensar em desenvolver uma tabela de honorários que tem a ver com outros parâmetros. Tenho ideia que ficará obsoleta a ligação dos honorários ao custo da obra.

Neste sentido, os arquitectos são muito formatados. Demora algum tempo a desformatação. Deixar uma visão formatada do que é um projecto de lado, sabendo que estará sempre lá, tal como a ânsia de construir. É preciso pensar antes de construir. Se continuamos a pensar que fazer projectos é apenas construir, perdemos grande parte do que é o exercício da profissão: a compreensão de um enquadramento, as implicações do processo, procurar as pessoas e saber o que necessitam. Construir para quê e porquê? Não podemos demitir-nos de colocar estas questões. O mundo da construção é ainda muito formatado mas está a mudar, lentamente. As mulheres conseguem mais facilmente pensar em projectos sem um impacto visível tão grande, integrar programas mais reflexivos, trabalhar a matéria de outra forma, mais como resolver problemas do que construir.

Há duas hipóteses de encarar a profissão de arquitecto: ou continuamos com esta agonia de construir que é completamente anormal num país onde quase tudo está construído; ou partimos para outra, para o que há a fazer, para a intervenção que é preciso não negligenciar na sociedade e no momento histórico – histórico porque é o nosso – que temos de viver. Muitas vezes a escolha do arquitecto serve para caucionar a ausência de discussão dos projectos no espaço público. É preciso saltar para a praça pública para que haja cada vez mais discussão de arquitectura relevante e não apresentação de projectos acabados. Isso é criar um espaço político para a arquitectura e para os arquitectos determinante para a visão da profissão.

A Artéria nasceu de várias ideias, como consequência de projectos que se foram expandindo e ganhando corpo. Um deles, A Agulha num Palheiro, é um interface para recolha e divulgação de informação sobre casas antigas, destinado às pessoas que desejam viver no centro da cidade de Lisboa e que procuram essas casas, como futuros proprietários ou arrendatários. Ou seja, Lisboa vista como imenso território de reabilitação, não só para promotores mas para todas as pessoas, pois toda a gente poderá contribuir para a reabilitação da cidade e os arquitectos devem estar com os cidadãos nestes processos.

Como arquitectos, temos uma grande arma. Somos muitos, não há família que não conheça algum arquitecto. Podemos fazer passar a palavra e começar a mudar a percepção que as pessoas têm da nossa actividade. As pessoas não sabem para que servimos. Os arquitectos precisam de deixar de estar à espera que as pessoas compreendam o que eles fazem. Precisam tomar a dianteira, propor projectos, explicar por que eles fazem sentido e ir em busca do financiamento necessário e das competências para os realizar. Os arquitectos não têm de ir-se embora do país mas envolver-se nele. Trata-se de nos envolvermos em projectos que tenham uma repercussão na vida das pessoas, que provem que somos necessários. Talvez resolver problemas em vez de estar sempre à espera de construir Parques das Nações. Há coisas que só podemos fazer porque estamos cá, no nosso lugar. Implica descer um pouco à terra, deixar a bolha, observar, falar e, sobretudo, ouvir. A isso juntamos uma série de ferramentas, adquiridas ao longo de anos de estudo e um saber criticar, uma série de competências que podemos usar e interligar para agir.

Concordo plenamente com a internacionalização mas é preciso ter uma máquina montada que responda às demandas, o que só é possível em ateliês já com grande experiência profissional. A Artéria está a internacionalizar o seu trabalho porque faz o que houver para fazer. Grandes desafios podem estar em pequenas encomendas. Desconstruir o lado supostamente purista da nossa profissão e pensar em intervir intervindo na medida necessária; ter a coragem de dizer que não é preciso mudar tudo para nos sentirmos importantes; mudar talvez pequenas coisas específicas. Sermos honestas nessa relação com as pessoas e com o edificado e não justificar o trabalho. E, francamente, não repetir eternamente a história do grande artista, da grande obra, não significando que essas componentes não estejam lá. Se o Edifício-Manifesto não estivesse a funcionar com vida, eu sentiria uma certa dor embora não dependesse de mim ou não principalmente de mim. Porque nós nos empenhámos, implicámo-nos naquela obra.

Implicamo-nos num lado humano que está ligado à construção. Há tanto para pensar que pode perder-se o pé facilmente, desligar o fio da meada. Nós temos o desejo desta arquitectura e não da que nos impingem pelos olhos dentro. Não será possível estar tranquilamente com a arquitectura e não em tensão e com espanto? Tomámos consciência dessa tensão e desse espanto em diversas situações. Em Março de 2011 preparámos uma conferência intitulada Fantasias semânticas sobre arquitectura no Santiago Alquimista. Perguntávamos às pessoas o que era para elas a arquitectura e, invariavelmente, elas respondiam que eram grandes edifícios, sumptuosas construções. Muitas responderam que era o Guggenheim de Bilbau. Ninguém parecia pensar no que há para pensar acerca de um beco, de uma rua, do quarto da nossa infância, de toda a envolvente de um entorno que nos envolve de tal modo que deixa de ser visível. Espantaram-nos essas respostas numa conversa com as pessoas em que elas falavam do espaço e de como vivem no espaço. Se há momentos em que a arquitectura está presente em nós é numa memória e não numa onda de consumismo-desejo.

Há um livro cuja crítica é neste contexto muito pertinente, A Anestética da Arquitectura, em que o autor apresenta uma imagem dos arquitectos contemporâneos como solitários pilotos de caça prontos a lançar bombas estéticas, bombas em 3D sobre um território. A arquitectura não trata de objectos mas de relações. Se há uma ideia que subjaz à arquitectura não é certamente a de bombardear um território com edifícios, mas a de estabelecer conexões numa reflexão colectiva em que cada acto, cada acção é um acto político, tomado no espaço público, feito de vivência cívica.

A pergunta que mais nos fazem é: como é que conseguem [ser viáveis economicamente]? Um ateliê é um espaço para pensar, é uma base de reflexão, uma reflexão feita em continuidade, sempre foi assim. A prática crítica ajuda muito a solidificar as formas de intervir. As pessoas compram a experiência e a frescura na abordagem a um problema.

O que constatamos é que é há muito mais gente com quem partilhar essas reflexões na nova geração de arquitectos. São pessoas muito propositivas, não têm práticas miméticas. Não é possível vender um mundo cor-de-rosa a jovens profissionais que já sabem que a vida vai ser dura. Nessa geração mais nova que a nossa, antevejo uma mudança grande em relação ao estatuto da profissão. São mais politizados, interessam-se. Nós pertencemos a uma geração de arquitectos que percebeu que, quando se queria lançar na profissão, não podia contar com os concursos públicos não só porque não tínhamos capacidade de investir para responder a esses desafios, como também porque muitos deles são por convite e sem encomendas não há portfólio para mostrar. Na minha geração, há muito pouca gente com ateliês em funcionamento. As pessoas têm formação, uma posição crítica mas não chegaram a organizar-se entre si. Talvez o paradigma para que estavam a trabalhar esteja morto.

Talvez o bom trabalho não seja necessariamente visível. O trabalho que a nossa geração herdou é um trabalho de fundo. As pessoas querem que as suas necessidades sejam respondidas e querem ser entendidas, assim como nós. Existe uma diversidade imensa em conseguir pensar com os clientes. A maior parte das pessoas não recorre aos arquitectos por desconhecimento ou receio: vamos ter com aquelas pessoas que fazem coisas esquisitas? Que são muito caras? Que não ouvem o que tenho para dizer? Construir é fácil, qualquer um constrói. Quanto maiores forem as condicionantes maior é o desafio. A vontade do arquitecto nasce dessa resposta, não lhe preexiste.

Ana Jara participou numa tertúlia sobre reabilitação social (9 de fevereiro de 2012), integrada na temporada 2 – Cidades procuram pessoas – Reabilitação, realizada na biblioteca da Ordem dos Arquitectos. E na sessão #6 da mostra de reabilitação, que teve como convidado João Mendes Ribeiro (6 de março de 2012), no Lux- Frágil, em Lisboa, relativa à mesma temporada. As mostras foram sessões de apresentação de proposta de projectos cujos participantes eram seleccionados por convite e também através de candidaturas espontâneas.

Os arquitectos têm de estar onde são necessários. Talvez não lhes falte trabalho já que não há dúvida de que querem muito exercer a sua profissão.
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