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Daniel Malhão, 42 anos, Fotógrafo

Daniel Malhão

42 anos
Fotógrafo

Existe uma prática de fotografia comercial e uma prática de fotografia autoral. O que eu descubro a certa altura do meu percurso, quando faço um trabalho para a exposição do arquitecto Nuno Teotónio Pereira no CCB (Arquitectura e Cidadania: Atelier de Nuno Teotónio Pereira, iniciativa conjunta da Ordem dos Arquitectos, CCB e instituto do estado responsável pelo património arquitectónico, em 2004), é a forma como se mistura a fotografia de arquitectura com a prática autoral.

Sou mais artista plástico mas a minha prática está sempre ligada à fotografia, mesmo na actividade docente. Sinto uma responsabilidade de passar a alguém os conhecimentos, falar sobre a prática e exercê-la em conjunto com pessoas que querem aprender.

Os cursos que faço sobre fotografia de arquitectura, para arquitectos e arquitectos paisagistas – pessoas que, por definição, não estão à procura de ser profissionais, que não vão estudar fotografia durante cinco anos e que são geralmente adultos com uma formação feita – resultam muito bem na medida em que as pessoas estão motivadas e muito concentradas para estudar fotografia num curto espaço de tempo. Estão interessadas em melhorar os seus conhecimentos, adquirir uma ferramenta conceptual que lhes permita desenvolver as suas competências e aperceber-se, por exemplo, que a história da arquitectura não é autónoma da história da fotografia.

Entendo a fotografia de arquitectura, que requer equipamentos muito especializados, como utilitária: serve para mostrar arquitectura às pessoas que não estão a ter a experiência de a ver, em primeira mão, serve para revistas especializadas, para exposições.

Do meu ponto de vista, a arquitectura pode acabar por tornar-se não só uma tarefa que nos é dada a desempenhar mas a forma como os temas de arquitectura passam a integrar o trabalho autoral. Há uma longa história da relação dos artistas com os arquitectos mas a fotografia tem quase por vocação inerente essa relação. Ou seja, tem por vocação, se posso dizer assim, perceber como é que os artistas usam a fotografia de arquitectura. Foi isso que pretendi mostrar na exposição Obras seleccionadas no Centro de Artes Visuais (CAV) de Coimbra (2012-2013), que juntou 43 fotos de trabalhos e de tempos diferentes obtidas entre 2001 e 2011. Posso chamar a isso o enunciado da questão. Na construção de uma fotografia, proponho um olhar e quero perguntar ao espectador: concorda comigo? A exposição põe em confronto imagens de épocas e lugares diversos, propondo ligações e dissonâncias que eu só fiz e só descobri posteriormente à realização de cada trabalho.

Na exposição a que aludi, começava com uma foto monocromática, de duas pessoas na paisagem numa contemplação de quase total invisibilidade: invisibilidade para quem vê a foto, invisibilidade para as próprias pessoas da foto, pois a atmosfera carregada deixa ver pouco (sem título, praia da consolação, 2003).

O enunciado primeiro é: como é que se trata o espaço em arquitectura. Consigo representá-lo se definir limites, uma espécie de contorno que a fotografia define, que engloba, que corta, etc. Numa foto que mostra um campo de jogos em Massamá (campo de jogos, zona industrial de Massamá, 2010) interessou- me o facto de esse recinto ser rematado por uma rede em cima, ter uma cobertura. Pude, ao fotografá-lo, mostrar um espaço definido por uma quase materialidade, um volume pleno de ar e delimitado por redes. Interessa-me os temas mais vernáculos, do dia-a-dia. Por contraponto, aparecia na exposição do CAV uma foto de uma espécie de contentor, que é uma impressora fotográfica digital de grande formato, completamente estanque (Lambda Printer HS 131, 2006). Quer o campo de jogos quer a impressora definem um espaço volumétrico, um totalmente etéreo, outro absolutamente estanque. Num há uma delimitação do espaço pela sua desmaterialização, noutra pela sua compactidade.

Num conjunto de fotos sobre as minas de São Domingos, no concelho de Mértola, era a paisagem como forma de ver o espaço que me interessava (o tríptico Mina de São Domingos, 2010). Trata-se de três fotos, que mostram o lago que se formou com as escorrências, no final de uma profunda ferida que é a vala a céu aberto deixada por décadas de exploração mineira. Voltamos às condições de visibilidade.

É nas fotos sobre o bloco das Águas Livres (Atelier Nuno Teotónio Pereira, Bloco das Águas Livres, 2004), que percebo, no meu percurso profissional, que é possível incorporar o trabalho arquitectónico no meu percurso autoral. Foi uma experiência muito significativa: tenho acesso a um apartamento recuperado como se tivesse acabado de ser construído [o edifício é de 1953]. A foto que tiro não é uma ilustração, é um tratamento fotográfico de um objecto significante. Eu não o ilustro, interpreto-o. É uma proposta artística, já não depende da obra. Até essa altura, tinha sempre separado o meu trabalho de fotografia de arquitectura do meu trabalho autoral. Mas descubro que há esta potencialidade fotografando um pormenor do apartamento, um espaço em que todo o sul (a luz) entra por um envidraçado. Dizendo de outro modo: como posso contribuir para que uma imagem não seja uma redundância?

Não precisei, neste caso, de ser descritivo em relação à arquitectura, talvez ao invés de uma encomenda que pressupõe uma intenção: mostrar, ilustrar algo. Como se sabe, as fotos integraram a exposição de arquitectura no CCB, que referi no início. Pressupõe-se que eu deseje, numa exposição de arquitectura que geralmente apresenta maquetas, desenhos e fotos, ver, perceber o assunto. Os objectos expostos não têm uma autonomia. É por isso que é uma boa ideia ter artistas a trabalhar numa exposição de arquitectura porque eles percebem como fazê-la.

Volto à exposição do CAV, que continuava com imagens do eixo norte-sul, em Lisboa (fotos de 2006) – espaços intersticiais, não propriamente usados para passar ou permanecer lá – para lembrar que a sala terminava com uma foto de um posto de gasolina em Mafra (posto de abastecimento, quinta da Mougueta, 2009). Uma bomba de gasolina não tem geralmente um grande investimento arquitectónico. Esta tem, há ali arquitectura a mais para uma bomba de gasolina, e é, igualmente, uma obra modernista como o conjunto das Águas Livres. Esta foto tem uma particularidade, que é a de fixar um lugar pelo qual passei muitas vezes na juventude e para o qual eu olhava sempre com atenção e fascínio, fixava o olhar ali.

Noutra parte da exposição estava a foto do início dos trabalhos de reabilitação do teatro Thalia, em Lisboa (Esfinges, Teatro Thalia, 2010), uma ruína que ia começar a sua obra de reconstrução, uma foto relacionada com fotos de casas inacabadas, ruínas de obras que não se completaram, monumentos na paisagem que não chegaram a ser, que falam da finitude do inacabamento. Interessa-me muito este processo – esta construção, reconstrução, destruição – tal como me interessa a questão da visibilidade/invisibilidade. Espaço-paisagem-arquitectura, o meu trabalho é sobre isto. Grande parte do meu trabalho é intensamente escultórico mas, ao contrário da ideia que muitos artistas do último quartel do século XX tinham em mente, eu não olho para a paisagem sentindo necessidade de a assinar, de a marcar, a minha intenção é uma intenção escultórica através do olhar.

Convidado a fotografar as próprias instalações do CAV – isto é, fotografar o local onde a fotografia ia ser exposta, convidado, portanto, a embarcar numa redundância, novamente me pus a questão de não tomar a posição de descrever o espaço (Centro de artes visuais, pátio da Inquisição, 2005). É uma construção conceptual e o processo criativo é espoletado não sei bem pelo quê. Suponho que faço as coisas de uma forma bastante livre, não há uma identidade marcada, ou há várias identidades que tomam caminhos diferentes, e dessa liberdade fazem parte as demandas das encomendas, as indicações que me são dadas. A suposta liberdade total é, por vezes, um erro de avaliação. A liberdade é: a partir do momento em que recebo indicações, faço as fotos como entendo, como acho que têm de ser feitas.

Numa fotografia de encomenda de arquitectura, o espectador vai ser ilustrado, há uma intencionalidade, uma intenção informativa. Às vezes, uma fotografia de arquitectura pode ser uma obra de arte, pode acontecer. Até hoje nunca me aconteceu que achasse que uma fotografia ilustrativa fosse uma obra de arte. É evidente que quero satisfazer a demanda do meu cliente. Estas fotos informativas, e falo de forma genérica, são muito eficazes, provocam fascínio, constroem desejo.

Daniel Malhão participou na conferência Fotografia de arquitectura – Olhar a cidade, no Lux-Frágil (22 de novembro de 2011). Coordenou a exposição Sampa – Olhares sobre a freguesia de São Paulo (29 de Junho a 31 de Agosto de 2012, na Galeria da sede da Ordem dos Arquitectos). Ambos os eventos encerraram workshops sobre fotografia de arquitectura.

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