← voltar
João Pedro Falcão de Campos, 52 anos, Arquitecto, Ateliê Falcão de Campos

João Pedro
Falcão de Campos

52 anos
Arquitecto

Há uma responsabilidade que sinto perante a situação actual, como arquitecto que pertence à geração que ocupa os lugares de poder, que gera perplexidades devido à falta de oportunidades dignas de trabalho. Há cerca de dois anos o nosso ateliê tinha 23 pessoas, hoje somos 11.

Dentro dessas perplexidades, penso que há a consciência de excessos cometidos e de uma usura na forma como se explica às pessoas as causas dos seus problemas. Como por exemplo, dizer-se que existia um problema financeiro, agora transformado num problema de crescimento económico, quando a realidade é bem mais complexa e remete para questões comportamentais de exemplaridade, respeito, diálogo, compreensão, solidariedade em todos os campos da nossa vida, como a saúde, a educação, a justiça, a cultura, o planeamento do território, a mobilidade, toda a redefinição dos serviços públicos e, claro, o exercício da arquitectura.

Existe sempre a tendência para pôr tudo em causa, uma incapacidade em valorizar, aperfeiçoar e dar continuidade às políticas anteriores, seguramente com correcções e ajustes necessários. Por exemplo, há perplexidades na forma como o programa de modernização do parque escolar destinado ao ensino secundário foi interrompido, sem alternativas de manutenção do edificado. Tinha na sua génese, uma ideia de valor excepcional mas um excesso de voluntarismo absoluto – num universo de 462 escolas, a Parque Escolar esperava intervir até 2015 em 332.

No caso do liceu Camões, que o nosso ateliê foi encarregue de recuperar e onde eu fui estudante, considero mais adequado que a obra não tenha avançado, em função desta constante mudança de direcção e objectivos em coisas começadas. A centralidade desta obra excepcional de elevado valor patrimonial, da autoria do arquitecto Ventura Terra, poderá servir e contribuir para o objectivo de reaver e rejuvenescer a população da cidade de Lisboa. Urge recuperar o liceu mas de forma ponderada, concertada e global e não pontualmente, como já várias vezes sucedeu no passado através de obras avulsas.

Os títulos de imprensa centraram-se nos custos associados àquele programa global de modernização das construções escolares mas a verdade é que muitos desses custos decorrem da aplicação fundamentalista, acrítica e pouco sensata das normas europeias. A par da adopção da moeda única também a transposição maciça de legislação europeia por parte de um país pobre como Portugal tornou incomportável a sua exequibilidade, nos períodos curtos de tempo em que essa adequação ou tentativa de adequação se fez.

A crise veio demonstrar o papel fundamental da escola pública de qualidade como garante da igualdade de oportunidades, a sua crescente procura por uma classe média empobrecida assim o comprova.

Ainda dentro da escola pública, também a universidade não pode perder de vista o seu principal objectivo, leccionar. A par, é necessária uma investigação ao serviço da sociedade, das empresas, das comunidades e da própria cidade, promovendo o desenvolvimento. No ensino da prática da arquitectura é decisivo que a academia não se feche sobre si própria, mas conte com profissionais com vasta experiência e de méritos comprovados na prossecução desse desígnio.

Deveríamos retomar uma série de políticas em que o Estado forçosamente tem de estar presente de forma estratégica, criteriosa e equilibrada, reconhecendo-se a necessidade vital de ser redimensionado. Na nossa área, será função do estado projectar? Em geral, penso que não. Compete-lhe planear, programar, enquadrar, gerir e avaliar, tarefas determinantes para o sucesso e continuidade das políticas.

É interessante pensar como as elites políticas nos venderam, anos a fio, a ideia de que o Estado tinha de pagar bem, pois se assim não fosse, haveria uma debandada geral das pessoas qualificadas para o sector privado. Eis uma grande falácia. Entendemos agora que o tal sector privado era de enorme fragilidade, ainda mais na nossa área, no sentido em que a ideia dessa concorrência é completamente enganosa. Tem de haver complementaridade entre público e privado, num relacionamento respeitoso de confiança, saudável e transparente que potencie todas as energias em favor do desenvolvimento e do bem-estar geral.

Estamos a terminar a obra do percurso pedonal da Baixa ao Castelo de São Jorge para a Câmara Municipal de Lisboa, um projecto que a iniciativa privada não faria [o edifício dos elevadores públicos, uma das três empreitadas do projecto, foi inaugurado a 31 de agosto de 2013; as outras são a requalificação da rua da Vitória; e a requalificação do largo Adelino Amaro da Costa e acesso ao castelo]. Aliás, dá continuidade a uma obra magistral do arquitecto Siza que resolve as diferenças de cota entre a Baixa e o Chiado, criando a possibilidade de as pessoas vencerem desníveis através das escadas rolantes de acesso ao Metro, o que revela uma grande inteligência e exemplaridade na intervenção. Consegue conciliar vários objectivos, potenciando a utilização do equipamento instalado. É, seguramente, uma solução que é boa para a mobilidade integrada da cidade em que a empresa Metro de Lisboa tem um papel primordial.

Nesse voluntarismo casuístico, que atrás referi, incluiria uma crítica à profissão, que também é uma autocrítica, em que o eu do arquitecto se sobrepõe às necessidades construtivas de manutenção, obra nova ou de reabilitação. E em que a cultura do eu se mescla com esta lógica de vencedores e de perdedores, quer dizer, da busca de um protagonismo que a prazo se revela pouco mobilizador.

O superlativo do eu também se liga a uma certa desmoralização das pessoas, olhando para a forma como as instituições são dirigidas. Há uma falta gritante de liderança, de sentido colectivo e uma falta de cultura arquitectónica e de cultura em geral. A EDP quer fazer um novo espaço museológico, mesmo ao pé do CCB que, ao que se diz, não tem verbas para repor e modernizar o seu equipamento cénico. Existe uma falta de culto de parceria, de mecenato e as instituições parecem gostar de pôr-se em bicos dos pés. Há um contínuo problema de escala de intervenção – oito ou 80 – e uma ausência de ligação entre os vários intervenientes nos processos, que não comparticipam em iniciativas, experiências e informação.

Há certamente perplexidades quando olhamos para uma rede de auto-estradas que precisará de manutenção – o paradigma do automóvel no centro da nossa vida só agora abrandou e por causa da crise. Por outro lado, entre outros exemplos, há um conjunto de edifícios e monumentos nacionais (como por exemplo o Mosteiro de Alcobaça ou o Palácio da Ajuda), cuja conservação certamente não está assegurada por verbas suficientes.

Não houve percepção ou coragem, em tantos anos, de limitar a construção de auto-estradas e de grandes superfícies comerciais nas periferias das cidades, para realizar intervenções mais pontuais e assertivas nos centros das cidades que combatessem a sua perda de população. Houve experiências em contraponto, como a de Guimarães, que responderam a outros paradigmas, a que só agora estamos a chegar na capital, paradigmas ligados à necessária regeneração urbana.

É de enaltecer o trabalho do arquitecto Manuel Salgado na autarquia lisboeta, ao contribuir com a sua sabedoria e experiência para uma forma mais actuante e transformadora da cidade. Trata-se de um caso feliz em que houve mérito do poder político ao perceber, valorizar e potenciar o contributo de um grande arquitecto em prol da cidade.

Olhamos para a Baixa pombalina, o sucesso turístico que se vive, percebemos o desafio e todo o potencial do lugar e pensamos como seria se porventura tivesse sido intervencionado há mais tempo, em continuidade com a reconstrução do Chiado após o incêndio de há 25 anos. É como tivesse de haver, consecutivamente, um marquês de Pombal, um Duarte Pacheco, quer dizer, figuras que se delimitam e recortam num tempo próprio sobre o qual se abate uma espécie de regressão mal elas desaparecem.

Para consolidar processos que essas figuras lideraram, é preciso tempo e a profissão de arquitecto precisa de perseverança, é um processo lento em que paradoxalmente se esquece depressa – entre nós esquece-se facilmente a mais-valia de figuras como Siza, Byrne, Souto de Moura e Carrilho da Graça, importância da sua prática e exemplo para a minha e recentes gerações. Não é saudosismo, é este confronto necessário entre resgate da memória e pesquisa para evitar a compartimentação das intervenções descosidas e avulsas – intervém-se de forma efémera aqui, depois constrói-se de novo, acrescenta-se sem critério e visão de futuro.

As regras para que os arquitectos possam trabalhar são imensas, complexas e muitas vezes incoerentes. Hoje para licenciar um projecto é necessário coordenar cerca de 17 estudos e projectos das especialidades. Há um legalismo exagerado que resulta numa burocracia, tempos e custos muito elevados para os promotores. No garante da qualidade do edificado parte-se de bons propósitos mas a sua implementação, exagerada face às circunstâncias, resulta num certo faz-de-conta. Não respeitamos nem nos fazemos respeitar.

Há um contraditório disto que afirmo, uma certa gestão da coisa provisória que se torna definitiva, que me parece perigosa se se tornasse numa atitude projectual: uma ideia que temos de reutilizar todos os tarecos porque vivemos um dia acima das nossas possibilidades e passamos hoje por dificuldades. Quero com isto dizer que é preciso construir bem, de forma durável – somos um país com poucos recursos, temos de projectar com acerto – e com uma conformação transmissível. Também encontrar um justo equilíbrio, estudar novos modelos e adaptá-los à nossa realidade. Assegurar algo belo, útil, perene, competitivo e que acrescente valor.

Na nossa prática de ateliê não partimos de uma ideia preconcebida, ela vai-se revelando e tornando nítida ao longo do processo, como se fizéssemos aproximações sucessivas à sua possibilidade de materialização e que vai sendo partilhada e trabalhada por pessoas com afinidades de pensamento. Com a vasta experiência conjunta de uma equipa, a avaliação constante das obras realizadas, a forma de abordar as questões vai mudando e a importância do tempo torna-se crucial. No início do meu percurso, reagia intempestivamente a interpelações que contradiziam as minhas ideias, como se elas fossem um atentado à minha criatividade. Uma necessidade de afirmação que via como uma força poderosa dentro de mim. A minha primeira experiência projectual foi feita na tropa – um quartel para Lamego e um museu para o Instituto dos Pupilos do Exército. Não prestei um bom serviço, faltava-me experiência e maturidade para fazer estas obras, pois a prática requer tempo e o tempo diálogo.

Valorizamos o processo de diálogo na arquitectura que lhe confere esse duplo sentido de arte e de serviço prestado; questão de saber ouvir, ver claro, aprender, um pouco como o aiquidô, em que as forças contrárias são aproveitadas para melhorar o desempenho. Existe nesta melhoria a necessidade da duração, de tentar não fazer juízos precipitados, de encontrar beleza em algo que não se suspeitava pudesse contê-la, de toda uma prática que evolui na curva do tempo. É um trabalho partilhado, desde logo com vários arquitectos amigos em que também se incluem formas de olhar que se opõem à minha e me fazem questionar.

Vemos muitas vezes obras que são manifestos, intervenções tornadas péssimos serviços para quem as encomendou e, ainda assim, muito importantes para a arquitectura. Embora me fascine e me alimente o conhecimento das vanguardas, estou mais conectado com os arquitectos que desenvolvem projectos que valorizam o valor da habitabilidade, uma prática mais próxima das pessoas, que levará muitas vezes a intervenções pouco percepcionadas. Lembro que existe um reconhecimento internacional pelo facto de os arquitectos portugueses fazerem obras com escassos recursos, que olha com respeito para a clareza, o rigor e a autenticidade da arquitectura que se faz em Portugal.

A crise levou o nosso ateliê a ampliar e diversificar a prática. Por exemplo, manufacturámos uma pequena publicação sobre a nossa intervenção de remodelação do edifício-sede do Banco de Portugal para revelar aos jovens arquitectos um projecto de execução completo. Anteriormente, eu tive o privilégio e a oportunidade de ter acesso à transmissão desse tipo de conhecimento ao trabalhar com Siza e Byrne.

A propósito dessa intervenção no Banco de Portugal, tive ali uma liberdade que todos os arquitectos gostariam de ter e que culminou na concepção de um vão de esquina sobre o qual me questiono sempre. A materialização do vão não correu da melhor forma, acho que não dediquei o tempo suficiente ou não me tinha permitido tamanha ousadia. O tempo revela a espessura das coisas, desvelando a sua adequação e torna-nos igualmente esquecidos.

Até que ponto os clientes valorizam este tempo, simultaneamente de lembrança e de esquecimento, necessário à consolidação dos processos? E até que ponto conseguem os clientes não mentir a si próprios? As pessoas são pouco exigentes nessa cultura consigo e com os outros. Para que não seja assim, é preciso que respeitemos e valorizemos o trabalho de cada um, a valorização do bem-fazer, o que significa sermos pagos de uma forma digna pelo trabalho que tem qualidade e que é exigível para que os projectos se concretizem de forma duradoura.

A arquitectura ainda é uma profissão que, para ser exercida, se coloca a concurso! Por princípio sou contra os concursos não remunerados. Qualquer trabalho merece uma retribuição compatível e justa. Pontualmente fui confrontado com uma certa condescendência do cliente, como se me dissesse: dei-te a oportunidade de exerceres, de te expressares, de te afirmares. Procuro servir o melhor que consigo e, de uma forma geral, existem manifestações de satisfação mas nem sempre o reconhecimento devido. É um trabalho duro, a arquitectura está longe de ser considerada uma necessidade primária.

O Código dos Contratos Públicos está muito longe de avaliar o mérito e o real valor das propostas construtivas, cingindo-se predominantemente às questões de custo como se tratasse de qualquer produto básico de consumo.

Pela primeira vez estou a desenvolver um protótipo de uma cadeira. Ainda não está confortável como devia estar. Para atingir o ponto que procuro, passo em revista quem melhor desenhou tantas cadeiras ao longo do século XX, Hans Wegner. Tenho grande admiração pela arquitectura do norte da Europa. Trata-se de países periféricos como o nosso, com pouca população comparativamente aos grandes países do centro da Europa, que apostaram há muito no design e são extremamente respeitados, encontraram os seus núcleos de actuação. Há muitos pontos de contacto, recordo a influência de Alvar Aalto na obra de Siza. Inversamente, uma nova geração de arquitectos anglo-saxónicos (Tony Fretton, David Chipperfield e Caruso St. John) são explicitamente influenciados por Siza, algo que nos deveria fazer pensar. A crise trouxe a oportunidade para reflectirmos sobre a nossa condição. Podemos não fazer coisas em grande escala mas fazê-las adequadas à nossa circunstância e bem. Algo contrário à megalomania de crescer muito, depressa e demasiadas vezes mal.

João Pedro Falcão de Campos participou na Mostra #3 (6 de dezembro de 2011) da temporada 2, sobre reabilitação, no Lux-Frágil.

← voltar