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João Ferrão, 60 anos, Geógrafo, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da UL

João Ferrão

60 anos
Geógrafo

A minha experiência como docente, investigador, consultor e governante permite-me ter hoje uma visão ampla, que procura relacionar diversas maneiras de olhar e ponderar, para cada contexto e problema, diferentes interesses e prioridades. Da mesma forma, a participação que tive no governo [secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades entre 2005 e 2009 no XVII governo constitucional] beneficiou muito da minha experiência profissional anterior. As actividades desenvolvidas como professor, investigador e consultor na área da geografia económica e social e do desenvolvimento regional e urbano permitiram-me conhecer razoavelmente a administração pública, sobretudo as entidades que lidam de um modo mais directo com o território (autarquias, comissões de coordenação e desenvolvimento regional, a antiga Direcção-Geral do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Urbano, etc.). Essa experiência revelou-se particularmente importante para alguém com o meu perfil, isto é, um independente (não sou militante do PS, partido do governo na altura) vindo directamente da universidade sem qualquer experiência prévia de natureza político-partidária, situação que tende a suscitar suspeitas de arrogância e distanciamento junto dos aparelhos partidários. Afinal, e como alguém referiu, os independentes são imprevisíveis, podendo facilmente transformar-se numa fonte de dissensão e de conflito. Claro que, ao mesmo tempo, têm a vantagem de serem facilmente descartáveis em momentos de crise governamental...

Esta fragilidade potencial de quem vem de fora do mundo partidário pode redundar numa marginalização efectiva, sobretudo quando estão em causa matérias ou processos de decisão considerados politicamente sensíveis. No caso específico do ordenamento do território, um domínio de política que lida constantemente com muitas outras áreas e bastante exposto a pressões do mais diverso tipo, esta situação é particularmente relevante. Uma das minhas primeiras prioridades foi, por isso, criar um clima de confiança com os colegas de governo e respectivos gabinetes, com os vários serviços que tutelava e, ainda, com as entidades com quem regularmente contactava: autarquias, ONG, promotores, etc. Esse clima de confiança assentava em dois pilares: credibilidade técnico-científica e proximidade relacional.

A credibilidade técnico-científica associada à minha proveniência académica permitia que fosse escutado, dentro e fora do governo, não em função do peso político que (não) tinha, mas sim em função do meu conhecimento acerca das matérias em jogo e, também, do país na sua diversidade territorial. É, aliás, muito fácil impressionar um autarca quando se demonstra que se conhece bem o seu município...

Quanto à proximidade relacional que procurei imprimir desde o início, ela chocou, nos primeiros tempos, com o facto de um número significativo de pessoas que ocupam cargos de poder considerarem uma condição de êxito do exercício desse poder cultivar uma posição de distância ou de quase inacessibilidade. Claro que esta visão alimenta uma rede mais ou menos organizada de influências: ter acesso a um governante torna-se um activo que é gerido habilidosamente por pessoas que se transformam em nós estratégicos das mais variadas redes de influência, partidárias ou não. Para um independente sem ligação com os aparelhos partidários, a única forma de não ser capturado por essas redes é adoptar uma filosofia de diálogo directo e rápido. Foi o que fiz, a partir de três regras muito simples: tratar todos por igual, receber todos os que pediam audiências no prazo de duas semanas e responder a todos os contactos telefónicos em 48 horas.

Esta relação directa procurava, também, corresponder a uma acção pedagógica em relação aos processos de decisão política. Por exemplo, muitos dos promotores com quem falei vinham acompanhados por advogados. O objectivo era sistematicamente o mesmo: tentar resolver uma ilegalidade através de um encadeado de argumentos jurídicos bem articulados do ponto de vista formal. Num caso mais complexo, o advogado presente referiu como último argumento: repare que a solução que proponho está de acordo com o espírito do legislador. Ao que eu respondi: mas, neste caso, o legislador fui eu. Como sabe qual era o meu espírito? Esta cultura de resolver ilegalidades através de raciocínios jurídicos de habilidade duvidosa impede que se olhe de forma inteligente para o que verdadeiramente interessa: o projecto e a sua qualidade. O curioso é que para muitas das questões levantadas era possível encontrar soluções adequadas em sede de projecto, ou seja, sem recorrer a malabarismos de retórica jurídica.

Esta mensagem era importante para os promotores mas também para os serviços da administração, onde impera, umas vezes de forma explícita e outras de forma tácita, uma clivagem entre os designados técnicos (que têm formações muito distintas: arquitectos, engenheiros, economistas, geógrafos, paisagistas, biólogos, etc.) e os juristas. Essa clivagem pressupõe, e alimenta, processos segmentados e sequenciais de decisão: os técnicos elaboram informações técnicas, os juristas avaliam essas informações do ponto de vista da conformidade legal e enviam-nas aos seus dirigentes, e estes despacham a Informação para decisão política pela tutela. Eram raros os casos em que existia já o hábito de técnicos e juristas prepararem conjuntamente, e desde o início, uma mesma Informação. Na verdade, este caminho linear e ascendente que vai do técnico para o jurista, deste para os sucessivos responsáveis do serviço e, finalmente, do topo de cadeia hierárquica administrativa para o decisor político, está fortemente interiorizado como o caminho natural nos processos de decisão. Curiosamente, este caminho pode funcionar, na prática, como uma forma de desresponsabilização. Num extremo, existe desresponsabilização dos técnicos porque estes sabem que dificilmente recairá sobre eles qualquer ónus, já que as suas opiniões terão ainda de ser validadas do ponto de vista jurídico. Mas no extremo oposto, em que na mesma Informação podemos ler sucessivas inscrições da frase Visto. À consideração superior, a responsabilidade recai quase que exclusivamente sobre os técnicos, na medida em que ao longo das diferentes etapas deste processo de tramitação ascendente os juristas ou dirigentes envolvidos actuam como meros pontos de passagem, sem emitir qualquer opinião substantiva.

À clivagem entre técnicos e juristas adiciona-se ainda uma outra componente: a do relacionamento da administração com o mundo exterior. Embora se defenda hoje de forma recorrente a necessidade de aumentar a participação pública nos processos de decisão, esta é ainda maioritariamente feita de um modo formal e em fim da linha, isto é, durante a etapa final dos processos de planeamento. Sucede que os técnicos da administração não têm, na sua esmagadora maioria, competências relacionais que lhes permitam actuar como gestores de conflitos, mediadores e negociadores. A visão demasiado racionalista que continua a prevalecer nas nossas universidades não tem valorizado a inclusão deste tipo de competências nos currículos das diversas formações disciplinares. Esta ausência de competências relacionais, ou mesmo a não valorização dessas competências, que podem ser garantidas através do recurso a especialistas externos em serviços onde elas não existam, explica a ocorrência de múltiplos casos de conflito entre as equipas técnicas responsáveis pela elaboração de planos, seguramente de elevada qualidade técnica, e as populações que habitam nas áreas de incidência desses planos. As formas de planeamento participado e colaborativo são hoje vistas como um meio não só de melhorar a adequação das soluções adoptadas às realidades a que dizem respeito, mas também de aumentar a aceitação social dessas soluções.

Esta perspectiva mais participada e colaborativa choca, no entanto, com obstáculos conhecidos. Ao nível da administração, prevalece uma cultura centralizada, sectorializada e verticalizada, baseada numa concepção hierárquica de controlo e comando. Neste contexto, agravado pela ausência de competências relacionais, não é fácil desenvolver formas colaborativas de trabalhar, decidir, programar e planear. Mas ao nível político verifiquei, com surpresa, que alguns dos meus colegas de governo encaravam os apelos a uma maior colaboração entre diferentes tutelas como um processo invasivo e a defesa de uma maior participação da sociedade civil e dos vários atores privados e associativos como uma demonstração de fraqueza: com essa mania da participação, estás a passar a ideia de que não sabes o que queres. Ora nós fomos eleitos para dizer o que deve ser feito. Este comentário, que ouvi por diversas vezes, mostra até que ponto continua arreigada em muitos decisores políticos uma cultura hierárquica e iluminada.

Também as relações entre os gabinetes dos ministérios e os respectivos serviços podem variar muito. Não é rara a ausência de uma relação simultaneamente regular, próxima e interactiva entre ambos. Nuns casos, as tutelas vêem nos serviços um obstáculo à rápida prossecução das suas prioridades políticas e, por isso, tendem a ignorá-los ou a pressioná-los dentro de limites mais ou menos razoáveis. Noutros casos, pelo contrário, as tutelas, por uma questão de segurança, apenas tomam decisões depois de disporem de informações elaboradas pelos respectivos serviços. Claro que as relações entre os gabinetes dos ministérios e os serviços incluem aspectos de natureza muito distinta. Em assuntos politicamente urgentes ou sensíveis, o primeiro tipo de situação tende a ocorrer mais vezes. Pelo contrário, para assuntos correntes a segunda situação corresponde à tramitação normal.

Face às duas situações que referi é possível explorar uma terceira: o trabalho colaborativo regular entre assessores dos gabinetes e dirigentes e técnicos dos serviços. Esta terceira situação é particularmente útil em matérias complexas que envolvem diversos serviços, tanto mais que esses serviços, mesmo quando pertencem a um mesmo ministério, entram facilmente em conflito entre si ou defendem posições variáveis ao longo do tempo, já que dependem mais do técnico presente na reunião do que de posições institucionais. Este trabalho colaborativo tinha um duplo objectivo. De forma mais imediata, criar compromissos e consensos em torno de assuntos difíceis, muitas vezes com um longo historial de conflitualidade interinstitucional. A mais longo prazo, criar rotinas de cooperação, de troca de informação e de co-decisão, combatendo quer os processos de decisão paralelos, que se ignoram entre si, quer os processos de decisão estritamente sequenciais, em que a decisão mais recente destrói total ou parcialmente as anteriores. A gestão integrada do litoral, a preparação do PNPOT [Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território] e dos PROT [Planos Regionais de Ordenamento do Território] ou vários dos instrumentos da política de cidades basearam-se, justamente, nesta filosofia de cooperação quer vertical, isto é, entre as tutelas políticas e os respectivos serviços, quer horizontal, ou seja, entre serviços, muitas vezes integrados em diferentes ministérios.

Curiosamente, esta filosofia foi considerada por alguns governantes, dirigentes e técnicos da administração como uma invasão, uma forma sofisticada de controlo, um factor de desordem dos processos de decisão. E, no que diz respeito ao último aspecto, era verdade: o que eu visava era contribuir para uma nova cultura de trabalhar e decidir nas instituições públicas.

Mudar a forma como as instituições funcionam exige tempo, persistência e continuidade. Pior do que a tentação recorrente de recomeçar tudo de novo é a facilidade com que se pode reverter o que já foi feito, é não conseguir garantir que os caminhos percorridos sejam sustentáveis. Há uma lógica que permanece muito forte: muda o dirigente, muda a instituição. Neste quadro, não há estabilidade institucional, ignoram-se os contributos dados ao longo de anos por quem aí trabalha e, como consequência, aumenta-se a desconfiança dos cidadãos nas instituições.

Nos serviços do Estado há algo muito interessante, a que podemos chamar comunidades de prática. Ao longo dos anos, os técnicos que trabalham num mesmo domínio, neste caso o ordenamento do território, vão-se conhecendo e trabalhando em conjunto, criando informalmente equipas que efectivamente funcionam como tal, comunidades inorgânicas fundadas na prática, no saber fazer. O seu grande argumento é esse mesmo: nós estamos no terreno, nós contactamos directamente com a realidade sobre a qual intervimos, nós partilhamos problemas e soluções, nós sabemos fazer. Este processo inorgânico mas colectivo de acumulação de saber fazer pode, no entanto, levar à cristalização de práticas. É, por isso, necessário criar condições para que existam tempos de transição que possibilitem, nomeadamente, que diferentes gerações combinem conhecimentos, saberes e experiências. Infelizmente, hoje os mais novos não têm acesso à administração pública e as gerações mais velhas estão fatigadas, desmotivadas.

Fazer mudanças exige estratégias sólidas, que não podem ser impostas de forma repentina e central. Vivemos actualmente tempos revoltos, mas não por boas causas. O ordenamento do território é particularmente vulnerável a essa situação, tanto mais que é uma política que depende bastante de orientações políticas adoptadas noutros domínios. Acontece que a presente política de ambiente, cujo ministério inclui o ordenamento do território, evolui mais por estímulos externos do que a partir de opções nacionais. Ora os factores de homogeneização (globalização, europeização) tornam-se desproporcionados se o nosso grande objectivo se resumir a sermos bons alunos. A questão, no entanto, não é ser bom aluno, é sermos professores de nós próprios. Mas isso exige que se saiba, do ponto de vista político e colectivo, o que se deseja e que caminho devemos percorrer para alcançar os objectivos desejados. E implica, também, empenho na mudança baseada na aprendizagem e numa nova cultura institucional, mais aberta ao diálogo, à cooperação e à co-decisão.

Sabemos que o ordenamento do território nunca esteve no centro da agenda política. Pelo contrário, é um domínio das políticas públicas que tende a ocupar uma posição marginal, excepto quando é tutelado por ministros que o valorizam e que têm peso ou habilidade política para o impor, como sucedeu com Gonçalo Ribeiro Telles, Luís Valente de Oliveira e João Cravinho. O único modo de diminuir essa excessiva dependência de governantes com um perfil particular é apostar, simultaneamente, na qualidade das instituições com intervenção no domínio do ordenamento do território e no maior reconhecimento social desta política por parte dos cidadãos e dos diversos atores públicos e privados. Um ordenamento do território institucionalmente mais colaborativo e socialmente mais aceite. É por isso que temos de saber mais acerca do modo como estimular processos de transição baseados na inovação cognitiva, institucional e social, e não numa procura incessante e esquizofrénica da boa legislação que permitirá, finalmente, resolver os graves problemas com que nos defrontamos no domínio do ordenamento do território.

João Ferrão foi convidado para o encerramento da temporada 3 – última sessão do Ciclo Conversas (ciclo específico da temporada 3 que tentou explorar os territórios comuns entre arquitectura e turismo). O geógrafo não pôde estar presente nessa sessão, sobre Turismo Religioso e Familiar, que decorreu na sede da Ordem dos Arquitectos (25 de junho de 2013).

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