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Luís Santiago Baptista, 43 anos, Arquitecto, director da revista arqa
A profissão de arquitecto está a sofrer uma forte mudança em continuidade com o questionamento dos fundamentos que a disciplina começou a desenvolver desde a modernidade. Não se trata propriamente de uma revolução mas de um conjunto de mutações e transformações que vêm acontecendo no último século.

Luís Santiago
Baptista

43 anos
Arquitecto

Mais recentemente creio que existe, de forma clara, uma expansão sem precedentes do campo disciplinar que pode ter a ver com um contexto de crise, mas que não se pode resumir a ele. Não se trata portanto de um mero escape à degradação das condições produtivas e profissionais, mas é algo que tem uma certa autonomia, um corpo próprio, que se manifesta na ampliação do território disciplinar, algo muito positivo, em contraciclo com uma tradição moderna e contemporânea apenas centrada no projecto com o intuito da construção, na qual os fundamentos teóricos apenas apareceriam como instrumentais e auxiliares. O projecto não só não é o único dos campos possíveis de acção e investigação disciplinar, como não pode ser o campo a que todos os outros se subjugariam.

Há novas possibilidades, caminhos, vantagens, que podem ser seguidas sem esquecer o que foi feito para trás, isto é, tendo em conta a tradição arquitectónica. Diria que é a partir do que foi feito que se podem abrir outras possibilidades, outras alternativas. Os arquitectos sempre fizeram muitas coisas, isto é, não só arquitectura no sentido do projecto. Reconheço, também, que fazer muitas coisas ao mesmo tempo pode ser não fazer nenhuma. E na actividade profissional de projecto, a continuidade é muito importante.

Devo dizer que, na nossa formação disciplinar, temos formas que nos permitem entender o nosso papel não restringido à dimensão interventiva do projecto. Essa actividade pode ser especulativa. Porém, diria que a nossa tradição é muito pouco especulativa, centralizada quase exclusivamente na materialização de obras. É claro que a actividade de projecto é basilar, mas toda a formação dos arquitectos não deve ser exclusivamente orientada para a prática projectual. Há muitos exemplos de reflexões que vêm enriquecer a arquitectura, em grande medida mesmo fora do nosso campo disciplinar. Estou a lembrar-me, por exemplo, dos textos provocadores do geógrafo Álvaro Domingues sobre a transformação da paisagem. Estes também são territórios potenciais do arquitecto.

Existem problemas estruturais em relação ao exercício da crítica. Somos um país pequeno, conhecemo-nos todos. Parece-me haver uma dificuldade de entender a crítica como um trabalho construtivo e produtivo. O que faz com que a própria crítica também tenha dificuldade em não extremar o seu ponto de vista, tornando-se subserviente ou adoptando a posição do dizer mal. Nenhuma dessas situações me interessa. A crítica pode ser feita de modo a não habitar esses extremos procurando uma certa abertura de perspectiva, uma certa estranheza discursiva e ser compreendida como tal. É no entanto uma gestão complexa. Mark Wigley diz que a crítica se destina a pôr o pensamento em movimento. Penso que o mais interessante é a procura de uma posição crítica e ambivalente, saber habitar territórios instáveis não caindo no elogio e na condenação fáceis. Produzir juízos é bem menos interessante do que levantar questões. Claro que, em algumas situações, o ataque pode ser um caminho, mais do que o elogio. O elogio normalmente não produz nada. Mas o ataque directo não promove a troca de ideias. Portanto, defendo a adopção de uma posição menos judicativa, mais construtiva, que, independentemente dos resultados, se torne relevante do ponto de vista de colocar questões novas e pertinentes. Mesmo que fracassem, em parte ou no todo. Existe uma beleza peculiar na contínua história das ideias e teorias irredutivelmente destinadas a falhar. O que importa verdadeiramente é a colocação das hipóteses e o seu confronto com o mundo.

A um determinado nível, um dos dilemas da crítica é a de que ela não consegue ser a mesma para públicos diversos. A crítica não pode ser igual para todos, especializados e não especializados. Os arquitectos têm uma formação própria, que lhes dá um conjunto de instrumentos de que não podem abdicar quando falam e escrevem. É manifesto que não é a mesma coisa escrever para especialistas e escrever para o público generalista. Não sendo a mesma coisa, podem ambas ser muito boas.

Como procuro tendências que estejam a desenhar-se, margens disciplinares a definir-se, isso interessa-me. Não penso que deva centrar-me no discurso disciplinar e o objectivo não é produzir um discurso único para todos. Estou a pensar nas experiências como curador em duas exposições Falemos de casas… em Portugal, incluída na Trienal de Arquitectura (2010), no Museu Colecção Berardo; e ARX arquivo (2013) no CCB. Em ambas, havia quer uma leitura mais profunda e lenta quer outra mais directa e rápida, destinada a todos.

Diria que a ambição é expor o material discursivo e dar liberdade aos destinatários na sua interpretação. Mais uma vez, trata-se de não fechar o processo, não excluir nada na definição do campo, mas entender e revelar os fundamentos de uma determinada questão. De um ponto de vista geral, não acho que esta atitude seja sempre inteiramente compreendida. Os vários papéis que desempenho - crítico, curador, professor - permitem-me estar sempre atento e a negociar conhecimentos e perspectivas para tentar entender o que está a passar-se. Temos a questão do digital, por exemplo. Há quem diga que este tema não tem interesse nem altera no essencial os modos de projectar arquitectura. Mas há quem pense o contrário, que está ali um potencial imenso e uma qualquer mudança de paradigma. Quando a revista arqa dedicou três números à Geração Z, onde se apresentaram trabalhos sobre práticas arquitectónicas emergentes portuguesas, não estávamos propriamente a tentar delinear uma tendência, mas apenas a colocar em causa a própria possibilidade de um conceito de geração. Entrevistámos uma quantidade significativa de arquitectos e críticos com os mais diversos posicionamentos para abrir e realçar vários pontos de vista.

Creio que existe uma questão geracional se nos centrarmos nas alterações profissionais e produtivas e não propriamente programáticas e linguísticas. O panorama dos arquitectos é muito diferente do de há 10 ou 20 anos. O campo e o espaço de acção dos arquitectos mudaram e é inevitável que haja consequências. Nesse sentido, é inevitavelmente geracional. Basta pensar nos arquitectos que foram estudar e aperfeiçoar-se em países estrangeiros (gerações Erasmus) ou nas plataformas online que permitem acesso fácil a grandes quantidades de informação são factos inultrapassáveis. Isto foi entendido equivocamente como um ataque às gerações mais velhas. Ou como uma afirmação da qualidade de se ser jovem. São dimensões que não podem ser comparadas, um início prometedor não é a mesma coisa que uma obra continuada, com tudo o que de positivo ou negativo isso possa ter. Tendo a acreditar que a melhor forma de preservar um legado, o da experiência e da tradição, ou mesmo de abordar uma nova prática se faz pelo questionamento e pela interrogação. O respeito que existe por um trabalho desenvolvido ao longo de muito tempo é justamente o de lhe endereçar novas questões críticas.

A nossa tradição arquitectónica é um pouco fechada e parece-me que o que tentamos fazer é sair das ideias consensuais e estabelecidas, convocando outros discursos e perspectivas. Não nos interessa também a oposição a essa tradição portuguesa. Procuramos uma visão panorâmica da arquitectura portuguesa recente num contexto global, o que diga-se é manifestamente difícil senão mesmo impossível, porque há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo e em lugares diferentes. Temos muitos e bons críticos, com fortes perspectivas singulares, mas que talvez não tenham muitas vezes facilidade em encontrar espaços comuns nos quais as suas diferentes posições se possam cruzar e contaminar.

Existe neste posicionamento um aspecto biográfico. O meu campo, que tenho desenvolvido na investigação académica, é o da dita desconstrução. Em todas as minhas actividades existe essa intenção de deslocamento, de criar tensão no que é familiar. Porque parto dessa necessidade? Diria que deriva da curiosidade e da sensação que tenho sempre que me falta ou escapa algo, que a minha perspectiva é limitada. É relativamente fácil dizer que um campo que nos é estranho não nos interessa. Em todas as minhas actividades procuro abrir as questões. Procurámos fazer isso, eu e o Pedro Pacheco, na exposição da Trienal de Arquitectura [2010-2011], através do dispositivo de apresentação dos nove projectos que seleccionámos. As casas desenhadas pelos arquitectos e a forma de as habitar não são a mesma coisa; por isso, conversámos com os arquitectos e os habitantes, para ver como uns e outros tendem a confrontar as visões que têm, os primeiros dos espaços que concebem, os segundos de como os habitam. Reafirmo que se trata sempre mais de questionar o processo do que da legitimação de respostas.

Creio que há a tentativa de que os discursos não se fechem, como a programação da Ordem dos Arquitectos – Secção Regional Sul em grande medida reflectiu, procurando contributos de fora da arquitectura, uma tentativa interessante de pôr em diálogo arquitectos e outros profissionais e de chamar ambos a partilhar ideias e o espaço possível, físico e mental, com as pessoas em geral. Acho que a questão central foi a de sair do espaço da Ordem e a de estar em contacto com interlocutores vários. Isto pareceu-me particularmente interessante. Por exemplo, participei num debate interessante em que os projectos não eram apresentados pelos arquitectos, mas pelos clientes e habitantes.

Existem questões fundamentais na relação entre a Ordem e os arquitectos e um certo divórcio de ambos os lados. É muito difícil, em primeiro lugar, definir hoje os limites da profissão, o que é a profissão hoje; em segundo lugar, a partição da Ordem em três (conselho directivo nacional e secções regionais norte e sul) não me parece que faça muito sentido. É claro que é difícil mudar o que está instituído, é algo sempre difícil e sensível. Há um caminho, digamos assim, que dividiu o território em áreas norte e sul de actuação, que não faz sentido. Há duas questões muito relevantes, que podiam ser tidas em conta: por um lado, uma intervenção para o exterior, na eficácia e intencionalidade na relação com os poderes políticos e instituições públicas; por outro, uma intervenção para o interior, centrada na clarificação e transparência nas problemáticas da encomenda e do concursamento. Finalmente, o ensino, embora extravase o âmbito da Ordem, tem hoje claros problemas de definição e orientação. Os programas estão apenas orientados para um tipo de resposta, não abrem para outros caminhos possíveis que a nossa profissão nos habilita.

Luís Santiago Baptista participou no debate Arquitectura em tempo de crise da temporada 1 – Nós e os Outros (19 de julho de 2011) no Lux-Frágil; na festa de encerramento A Minha Casa, da temporada 2 (21 de junho de 2012), também no Lux-Frágil; e no debate de abertura da temporada 3 (27 de setembro de 2012) que se seguiu à projecção do filme Ordos 100, de Ai Wei Wei, na sede da Ordem dos Arquitectos.

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